CASA
DE ÉPOCA: uma experiência temporal
com a criação de elementos para as 4 principais épocas do ano.
“Para
ajudar na procura da personalidade do futuro ser adulto,
há
ritmos que a família e o meio ambiente podem respeitar e marcar
conscientemente,
fazendo
com que a convivência social seja harmoniosa,
sadia
e até terapêutica para grandes e pequenos”[1].
Busca-se aqui,
pensar junto à vivência dos ritmos do ano. Com isso, pretendemos criar uma
dimensão temporal saudável que nos torne mais resilientes aos efeitos
aceleradores do contemporâneo que produzem, muitas vezes, ansiedade e estresse.
“Na
Terra vivemos no espaço e no tempo.
O
espaço fecha, encerra, exclui, limita, acaba, termina.
O
tempo flui, é ilimitado e nós sempre corremos atrás dele.
Isto
cria a insegurança, incerteza, problemas sociais.
Para
nos sentirmos melhor, criamos espaços de tempo: uma hora, um dia, um ano, etc.
E
estes espaços nos são dados pelo cosmo, pelo sol que levanta diariamente e
deita em horário rítmico”.
A proposta é transformar a casa
toda em uma “mesa de época”. A mesa de época, vivenciada na educação Waldorf, é
uma representação do macrocosmo, especialmente ligado aos ciclos da natureza e
aos eventos culturais, no microcosmo da sala de aula. Com ela, a criança pode
vivenciar concretamente o que acontece na natureza e na vida humana. Desta
maneira, é como se ela pudesse “ver” os ciclos do tempo em seu espaço doméstico.
Por isso, fazer com que o tempo
se torne visível no espaço é o grande objetivo da experiência de Casa de Época.
A seguir, fiz a recolha de
algumas das minhas crônicas, impressas e publicadas desde 1995, no semanário mineiro
Correio Trespontanom que tratam do
assunto de modo pouco convencional. Algumas trazem sugestões objetivas de como
vivenciar as épocas em casa, outras, visam apenas inspirar a experiência.
Para outras informações, acesse o
site das Festas Cristãs (http://www.festascristas.com.br/ciclo-das-festas), nele há textos teóricos,
versos, contos e muito material ligado a este apaixonante tema.
Boa leitura,
Nina
Casa: organismo vivo
Você
já teve saudade de cheiro? Pois eu tenho saudade de cheiro de sol. Faça uma
experiência: feche os olhos e tente se lembrar da maciez e do cheiro de uma
roupa recém-recolhida do varal em uma tarde de sol. Lembrou? Você pega a roupa, ainda quente,
dobra e, automaticamente, cheira. Ai. Dá uma paz. Uma sensação de
preenchimento, de infinitude. Que saudade do tempo em que o mundo era certo, que o clima era reto e que a
chuva vinha e voltava em uma dança sincrônica e harmônica com o sol...
A
casa é um organismo vivo. Nesta época do ano, com essa chuva toda, a gente
percebe isso claramente, não é mesmo? Vida é uma coisa que dá muito trabalho.
Sei lá. A vida não se enquadra. Por mais que tentemos com que ela se comporte
como queremos, a vida transborda, transgredi, transcende.
Na
chuva sem fim, a casa é mais viva do que nunca: pinga, mofa e até fede. Ai.
Nada pior do que entrar no escritório pela manhã, para abrir uma janela, e
sentir aquele cheiro de cachorro molhado. Aliás, sugiro que não se usem amaciantes
nas roupas nesta época, pois, além de fazerem
as roupas demorarem muito mais para secar, acentuam o cheiro de roupa
mal seca.
A
vida requer movimento, ritmo. Requer não: exige. E como é difícil se movimentar
debaixo de chuva. Ai. Chuva sem fim.
Fazer
faxina com tempestade é praticamente impossível. Não é somente uma questão
técnica, é também psicológica. Faxina implica em estar aberto, arejar,
ensolarar, quarar. Lembram de quarar? Coisa antiga. Tem gosto de infância, de
quintal. Cheiro bom de roupa ao sol. Caldinho de água sanitária ou anil. Lembram
de anil? Ui. Antigo. Para quem não é tão centenário quanto eu e não o conheceu,
explico: anil são umas pastilhinhas de cor azul clara que eram usadas como
alvejante nas roupas brancas. Será que ainda existe anil? Sei não.
Esse
papo antigo dá uma saudade. Uma saudade do sol do verão. Das chuvas rápidas de
fim de tarde. Daquele brilho molhado e fresco que surgia tão logo a pancada de
chuva passava. Ai. Que saudades do sol. Mas saudades de um sol manso, ficável.
Um sol que nos iluminava por dentro. Do qual a mãe pedia, sem muita
insistência: põe chapéu, filha. Sol matinal que trazia saúde aos bebês e
aquecia as mantas dos avós. Sol da vida. Que fazia da casa um lugar habitável,
seguro.
Essas
perturbações climáticas já estão alterando minha psique. Tenho saudades de um
sol de antigamente que combinava com a chuva e, juntos, faziam do verão uma
estação alegre e da casa um organismo sadio.
A quaresma
Duas coisas eu
gostaria de deixar expresso nessa crônica semanal: minha adoração por
exercícios do tipo "ascese" e a potência que eles têm em promover
nossa saúde física e emocional. A época da quaresma (poderia ser qualquer
outra), mas quando aproveitamos a força dessas marcas culturais sentimos mais
claramente o impulso que elas contém e sua capacidade de atuar diretamente em
nossa vontade e disciplina.
A primeira coisa que devo dizer é que ADORO a quaresma. Sou um
pouco avessa a maiúsculas excessivas, mas o uso de caixa alta para grafar o
verbo apreciativo se faz necessário, pois ADORO mesmo a quaresma e quero que o
leitor perceba a intensidade dessa afirmação. Ao expor os motivos que me fazem
adorar a quaresma, acredito que o prezado leitor há de entender muito dos ritos
que pratico nessa época e que, desde a Antiguidade grega, vem sendo ritualizada
de variadas formas. O que me move na quaresma é uma ascese, palavra de origem
grega que deriva de exercitar, pois então, ascese é um exercício sobre si
mesmo, uma prática que visa o fortalecimento da disciplina e da vontade.
Acredito em disciplina e vontade, apesar de não acreditar que elas são um
caminho para algum reino transcendental. Creio na disciplina e no exercício da
vontade para nos ajudar a tocar essa vidinha terrena tão cheia de desafios
internos e externos. Por isso, nessa época do ano, intensifico as orações, as
dietas alimentares e a meditação. Esse ano, tenho três exercícios: um
alimentar, um meditativo e um de reza.
Na alimentação peguei
pesado: nada de pão. ADORO pão. Tenho de repetir: ADORO pão. O paciente e
espantado leitor deve estar se perguntando: se a cronista enfática adora pão,
por que não come pão? Ora, respondo eu, por isso mesmo. O fortalecimento da
vontade, nesse exercício, está justamente em fazer ou
deixar de fazer aquilo que é mais custoso. Que graça teria a autoimposição de
não comer jiló. Já viu alguém "sofrer" por não comer jiló? Agora,
imagine você se privar, espontaneamente, daquele delicioso pão quentinho com
manteiga...ai. Nem me fala.
É
como na musculação, quanto mais peso, mais músculos. Nossa que prática
masoquista, deve estar exclamando o leitor. Que nada,
acentuo eu, é exercício, tem dia para começar e acabar: vou comer o Pão da
Páscoa. Além da dieta, tem as orações. Tenho declamado uma oração diariamente
ao acordar e ao deitar. Incrível o poder que isso tem. É um texto em verso,
longo e chatinho, mas me preenche de força de concentração. Por fim, a
meditação: quarenta dias de contemplação
das Madonas, um exercício terapêutico utilizado a princípio em hospitais
psiquiátricos e que agora é recomendado para nos manter alinhados e
equilibrados mesmo nessa louca vida contemporânea.
O coelho a borboleta e o ovo
É
tarefa de toda pessoa que convive com crianças, independente de ser pai, mãe ou
professor, permear com significado sagrado os pequenos e grandes momentos de
suas vidas. Atualmente, para a maioria das famílias, a Páscoa é comemorada com
a distribuição dos ovos de chocolate, muitas vezes comprados no supermercado
junto com a própria criança. Desta forma, o espírito da Páscoa fica restrito ao
ato de consumo e prazer imediato. Para as famílias religiosas, às vezes fica um
pouco difícil fazer com que a criança perceba a relação entre os ovos de
chocolate do supermercado e os sofrimentos do querido Jesus. É importante estarmos alertas a essas
questões para evitar criarmos situações dicotômicas ou vazias de significado e,
com isso, prejudicar a formação do corpo ético-moral das crianças.
Nossa história
começa bem cedinho em um parque ensolarado.
Uma jovem
coelhinha passeava despreocupada colhendo suas cenouras quando uma borboleta
pousou perto dela e falou: "Olá! Você pode me ajudar?".
A coelha
respondeu: "Claro, linda borboleta, o que você precisa?" A borboleta
explicou: "É que hoje é o domingo de Páscoa e eu preciso avisar a todo
mundo que hoje se comemora a Vida".
"A Vida?
Como assim?" perguntou a coelha, espantada.
"Uma vez
por ano, nós, as borboletas, lembramos as pessoas do Milagre da Vida".
“Saímos do escuro casulo e voamos pelos ares mostrando a beleza da luz e da cor
que dá alegria à vida".
"Mas como
eu posso ajudar, se eu não sei voar?", perguntou a coelha.
"Entregando estes ovos de chocolate em todos os lares", respondeu a
borboleta.
Surpresa, a
coelhinha perguntou: "Ovos de chocolate? Como assim?" "Sim, os
ovos são portadores da vida. Deste modo, esses ovos de chocolate lembrarão a
todos a vitória da vida sobre a morte", esclareceu a borboleta, batendo as
asas alegremente e começando a voar ao redor da coelha.
"Então
deixe comigo, de hoje em diante eu e todos os coelhinhos vamos cumprir nossa
nova missão e entregar os Ovos da Vida!".
Pequenas
estórias, como essa, que inventei para minhas sobrinhas, reúne as imagens da
ressurreição, dos ovos de chocolate e do coelhinho, podem ajudar a unificar, de
forma lúdica e alegre, os diversos simbolismos da Páscoa, independente de
coloração religiosa, colaborando para a formação do corpo ético-moral da
criança. E, assim, tentar evitar dicotomias do sentir e ações vazias de
significado, centradas apenas no prazer imediato.
Páscoa sincrética
Muitas
mães me perguntam o que fazer para preservar os pequenos do avanço agressivo da
mídia pascal. Realmente não sei se isso é possível ou mesmo se é
necessário. Penso que o mais importante
é, em qualquer idade e em qualquer situação, oferecer opções. No caso da
Páscoa, aqui em casa, optamos pelas lições da natureza. Observamos que, pelo
jardim, muitas lagartas procuram um lugar seguro onde possam construir seus
casulos e se preparar para o momento pascal. Como momento pascal, entendemos a transformação
de uma existência terrestre para uma vida alada, uma passagem da escuridão para
a luz, a metamorfose positiva de um modo de ser ou de uma situação. A criança,
especialmente a pequena, ainda não consegue captar a noção pascal
intelectualmente, mas a natureza ensina-lhe o essencial.
A cena
foi mais ou menos assim: um coelho de papel olhava para mim de dentro de um
ninho de capim citronela e lã de carneiro colorida. Aconteceu quando eu estava
sentada no sofá da sala, um pouco à toa, contemplando a árvore da Páscoa com
suas lagartas e pingentes enfeitando os galhos secos. Não pensava em nada em
especial, até que meu olhar cruzou com o pequeno pedaço de papel em formato estilizado
de coelho. O personagem, juntamente com outros três, chegou via correio, fruto
de uma campanha de marketing do banco que minha mãe é cliente.
Não
costumo utilizar, nas comemorações de Páscoa aqui de casa, a imagem do coelho.
Pelo menos, não como personagem principal. Nossa estrela pascalina é a lagarta,
juntamente com seu casulo e a sensacional metamorfose a que se submete. Uma
verdadeira ressurreição. A transformação da lagarta em borboleta é uma imagem
rica para a vivência da intensidade pascal.
Bem, mas a
questão é, onde entra o coelho do merchandising nisso? Resposta: o tal do
coelho está em toda parte. Para a grande maioria das crianças, especialmente as
pequenas, a Páscoa se limita aos ovos de chocolate trazidos pelo coelho do
merchandising. Fazer o quê? Combater? Negar? Reclamar? Ignorar? Em minha
opinião de consumidora, mãe e educadora, não necessariamente nessa ordem, o
melhor é seguir o exemplo do meu filhote de três anos: incorporar.
Quando a
avó o presenteou com os coelhos, ele não teve dúvida, foi direto para a árvore
e os colocou nos ninhos que estavam preparados para a chegada dos ovos da vida.
Assim, aos três, o pequeno chegou à concepção da Páscoa sincrética que muitos,
há milhares de anos, teimam em negar. Diante disso, resta-nos festejar. Viva a
Páscoa de papel e logomarca. Viva a Páscoa transformadora e espiritual.
Páscoa infantil
Pensar a
Páscoa de forma adequada às crianças da Educação Infantil é um grande desafio.
Por falta de conhecimento, cada educador acaba imprimindo de si na hora de
falar da data às crianças. Isso pode ocasionar alguns equívocos como a ênfase
em imagens que estão acima da capacidade de entendimento emocional da
criança. É um assunto delicado e
controverso, mas nem por isso deve ficar fora da discussão.
Meu
pequeno chegou em casa com uma incrível novidade: "Mamãe, a professora
falou sobre a Páscoa de Deus". Sentei. Até hoje, entendo pouco alguns
dogmas católicos e não sei por que devemos enfatizar a dor na representação
infantil da Páscoa, por isso, não entrarei nesse mérito.
Meu foco
é outro: justificar a Páscoa enquanto oportunidade de celebração da vida e
adequá-la às crianças. Comecemos lembrando que a Páscoa é derivada de uma festa
universal arreligiosa de origem remota. Celebra a chegada da primavera no
hemisfério norte, de onde vem a maioria de nossas tradições. O que é a
primavera no clima temperado? A volta da vida. A neve derrete e por toda parte
brotos começam a aparecer.
Um dos
ícones pascais, o coelho, é um dos primeiros a sair da toca em busca de
alimento. A primavera traz de volta a
comida e com ela as condições de reprodução da vida, coisa na qual o coelho é craque. Daí, sua vinculação
legítima com a vida renovada, com a Páscoa.
Outros
personagens, que dormiram o inverno todo aparecem na primavera, os insetos.
Entre eles, a borboleta, símbolo forte de metamorfose, de transformação que
para alguns povos é a representação da alma liberta que ascende aos céus após a
morte do corpo físico. Imagem que combina muito bem com o "espírito"
da Páscoa cristã e judaica. Afinal, para os judeus, a data comemora a passagem
de uma vida de escravidão e sofrimento para uma de liberdade e júbilo na Terra
Prometida. É igualzinho na tradição cristã. Nosso querido Jesus estava
aprisionado, dentro de uma gruta escura e sai de lá resplandecente, rumo ao
céu, cheio de vida real e luz.
A Páscoa
é um momento riquíssimo em imagens, mesmo preservando o espírito de
ressurreição litúrgico, podemos utilizar símbolos mais apropriados ao
imaginário infantil, especialmente em se tratando do primeiro setênio que
corresponde à Educação Infantil. Nessa fase, a criança acredita piamente que
"o mundo é bom", e essa crença será importante constituidora de
ética, moral, amor à vida e ao bem.
Descobrir
precocemente que há maldade no mundo e muita, até mesmo ao ponto de fazer mal a
uma pessoa tão boa e especial pode destruir o germe da confiança para toda vida
e podemos imaginar no que isso pode acarretar ressentimento e reatividade.
Páscoa
Africana
Fertilidade,
renascimento, vida nova, nutrição. Elementos pascais presentes no mito Yorubà.
Na Páscoa africana, a orixá Iyá Mi é associada ao mito ancestral do ovo como
portador da vida.
Já falei de muitas páscoas aqui na coluna. Quase sempre tive a
intenção de mostrar que, independente de qual apropriação cultural o mito
tivesse, os elementos da época da Páscoa se apresentavam: fertilidade,
renascimento, vida nova. Foi
assim ao comparar as lendas israelenses e cristãs. E também quando da menção
das lendas gregas, pagãs europeias e das forças da natureza. No entanto, até o
momento, não tinha avançado para pesquisar o mito pascal muito além da
civilização ocidental.
Ultimamente,
estou sentindo forte atração pelo continente africano. Vez ou outra, me vejo imaginando uma viagem pelas áfricas. Também tenho estado
alerta para as inovações estéticas, éticas e políticas que o continente
africano anda apresentando. Por
isso, nesta Páscoa, vou tentar apresentar o rito pascal a partir de lá: do continente africano. Mais precisamente uma
"páscoa" no culto Yorubà.
Comecemos
pelo símbolo mais externo e comercial da Páscoa na atualidade: o ovo. Como se
sabe, o mito do ovo está presente em quase todas as culturas
antigas. Na Yorubà, o ovo está ligado à orixá Iyá Mi, uma entidade feminina,
senhora da fertilidade. As festas em homenagem às Iyá Mi, na África, são
comemoradas entre os meses de março e maio, os mesmos meses
que a Páscoa é comemorada no ocidente. No continente africano, é a época
que antecede a estação das chuvas, representando mais uma vez um culto de fertilidade. Pois toda a
vida na Terra depende do poder das Iyá Mi. A força germinal contida no ovo está
associada à energia vital, à força da vida. O ovo pascal representa o poder da
natureza de gerar e nutrir a vida.
Assim,
nesta Páscoa, mesmo que estejamos presenteando ovos de páscoa com brinquedos de
plásticos dentro, tentemos, em algum momento, revivificar a imagem divina da
vida.
Canção
de Páscoa
Quando sofremos,
sempre esperamos desesperadamente o fim do sofrimento. Quando sentimos dor,
buscamos anestésicos. Quando entristecemos, buscamos distração. Como são
ignorantes as cronistas de variedades ao agirem assim. Deviam elas mirar-se nos
sábios, aqueles que sabem. Os que sabem sabem que a vida é mais. Que a vida
inclui. Quem a vida não distingue alegria de sofrimento. Que a vida não
distingue dor de não-dor, tristeza de alegria. Os sábios sabem, e as cronistas
de variedades deviam aprender com eles, que a vida é uma canção, uma canção de
Páscoa, ritornelo matinal de domingo.
Após sete dias entre a dor e a dor, a cronista levanta da cama com
uma missão: escrever para a Páscoa. Pergunta-se como. Procura em todas as suas
dobras temporais quando a Páscoa lhe foi. Investiga espaços em si na busca de
vestígios pascais. Tudo em vão.
O
que está mais próximo de si é a dor. Ainda lateja a fronte. Ainda ressente o
estômago. O peito oprime, a nuca rija-se e a sensação de Páscoa não vem. Resolve
pôr-se a escrever. Que as mãos tragam aquilo que a cabeça dolorida foi incapaz.
Concentra-se no escuro por detrás da pedra. A grande pedra que por três longos
dias impossibilitou a luz. Saberia ele que a luz voltaria? Certamente. Afinal, os sábios sabem mais do que nós, mais
do que todos. Certamente sabem que a luz nunca deixa de ressurgir. É como uma
canção, dessas de criança, com estribilhos que insistem em ficar conosco,
ritornelos presentes nas vozes que nos habitam. Os sábios sabem do
retorno da luz. Será por isso que aguentam a treva com tamanho fervor?
Tenho minhas dúvidas. Creio que a resistência dos sábios às trevas
não se deve à certeza que passarão. Não. Acho que nós, pobres cronistas
doloridas é que assim pensamos, em nossa pequenez ignorante. Os sábios resistem nas trevas,
pacientes e encantados, por um único motivo: não fazem distinção entre treva e
não-treva, entre dor e não-dor. Os sábios sabem que a
vida não se prende a detalhes de luz e sombra. Não, os sábios sabem que a vida
é mais que dor e não-dor. Só os tolos esperam desesperadamente a luz para
viverem. Só os tolos e as cronistas doloridas acreditam que a saúde é mais do
que a doença.
Para
os sábios, a vida é sempre muito mais. Para os sábios, a vida é uma canção. Uma canção de Páscoa, ritornelos entrelaçados,
em cirandas infinitas. Os sábios sabem que nem a morte diminui a
intensidade da vida. Os sábios sabem que a vida é ininterrupta e bela em todas
as seus matizes. Os sábios afirmam o que há, independentemente de suas
preferências. Vez ou outra, podemos escutar um sábio dizendo "afasta de
mim" ou "preferiria não", mas são tolices passageiras, logo
dissipadas pela sabedoria que adquirem enquanto habitavam desertos violentos e
hostis, enquanto viviam dores em cavernas escuras e fétidas. Os sábios sabem que
a vida é uma canção, ritornelo infantil em manhã de Páscoa.
Mamãe,
você acredita em Deus?
A época de João
chegou. Parece que o céu noturno se aproxima de nós, trazendo a dimensão do
espiritual para o cotidiano. As festas dos santos alegram corações e deixam as
mentes mais confusas diante de suas racionalidades arbitrárias. Pretendo, aqui
na coluna, mas não sei se conseguirei, seguir João. A partir de agora e até o
final de junho, vou tentar escrever pequenas histórias que nos levem mais perto
do plano estelar da vida. Começo com uma das perguntas mais fundantes da
existência: Deus existe?
A vela lilás ardia no centro da mesa, iluminando a refeição
cotidiana, faltavam dez minutos para a uma da tarde e o ritmo das garfadas
estava se acelerando, pois o turno da tarde começara e o almoço ainda estava em
meio. "Segunda-feira típica", pensava a cronista, mastigando, quando
ouviu a pergunta: "Mamãe, você acredita em Deus?". Um pedaço de
alface interrompeu seu percurso e, ao retornar, bifurcou para a traqueia.
Segunda-feira
típica. Você com pressa, o almoço atrasa e as crianças, ah... as crianças, sempre
encontram momentos incrivelmente impossíveis para as perguntas mais fundantes
da existência.
Em uma fração de
segundo, um turbilhão de respostas veio à mente, enquanto a cronista engasgada
tossia tentando livrar a traqueia do visitante vegetal indesejado. Entre a
miríade de respostas famosas, a do psicanalista Yung se apresentou em inglês: I
don't bealive. I kown.
Ainda
arranhando a garganta, a cronista olhou para o filho. O garoto, garfo esquecido no ar, aguardava a resposta, alheio à
complexidade da pergunta e a correria da segunda-feira típica.
Enfim,
respiração restabelecida, a cronista pensou que, com quase oito anos de idade,
era a hora das respostas, antes fantasiosas, mudarem de nível e começou a
ensaiar o que dizer, enquanto, fazendo uma mímica de serenidade, conseguia um tempo, abusando da autoridade materna: "eu respondo,
mas você tem de ir comendo" e emendou para tomar fôlego: "mastiga bem
os legumes". A estratégia funcionou, mas ela sabia que a resposta era
inevitável e poderia vir a ser definitiva e lembrada para sempre como um norte
ou algo a ser combatido, pois vozes maternas, declarando suas crenças estão nas
bases dos relatos biográficos da grande maioria das pessoas.
O que a pobre cronista encurralada poderia responder, sem antes
lançar-se a uma pesquisa exaustiva dos pressupostos da própria pergunta? Como
dizer sim ou não, sem definir, clara e antecipadamente, a qual conceito de Deus
estava se referindo? Se dissesse, como Yung, "eu sei", seja para o
sim ou para o não, estaria racionalizando um dos maiores mistérios da vida.
A badalada da
uma soava, indicando a hora de sair para a universidade. Esse espaço destinado
à crônica semanal chega ao fim sem que a resposta possa se apresentar e a
pergunta inaugura a chegada da época de João.
Mudai vossos sentidos
Gosto
de aproveitar as épocas do ano para refletir um pouco sobre as qualidades que
cada época nos traz. Em São João, para mim, a melhor quermesse é aquela que me
ajuda ser uma pessoa mais atenta e consciente, como queria João.
Eram
poucas as palavras com as quais João Batista alcançava e punha em movimento os
homens do seu tempo: "Mudai vosso sentido; o Reino dos Céus está
próximo"(Mt3, 2). Essa mensagem continha tudo o que podia preparar a
virada dos tempos. O Batista percebia um entrelaçamento entre os acontecimentos
espirituais e humanos. "Os Reinos dos Céus estão em movimento",
dizia.
Essas
palavras do professor e teólogo Gerhart Palmer, escritas em 1976, por ocasião
da Época de São João, me intrigam. O que queria dizer João com: "Mudai
vosso sentido"? O professor afirma que, com alguma atenção, é bem possível
perceber que os "céus estão em movimento" e, por isso, devemos “mudar
nossos sentidos”, como advertia João Batista.
A
começar pela nossa percepção temporal, o tempo linearmente estabelecido, como o
conhecíamos, não existe mais. A aceleração e a multiplicidade de
"agoras" é uma coisa que pode ser experienciada até mesmo por quem
tem uma vida bucólica, no campo, longe da agitação das grandes cidades. Palmer
diz que, além da acelaração temporal, do movimento dos céus, temos muitos
outros motivos para relacionar a fala de João no deserto conosco hoje. Segundo ele, estamos vivendo em um tempo onde
as almas humanas estão muito atarefadas e sempre ocupadas.
Por
isso faz parte da nossa mudança de sentido atual, criarmos espaços em nossas
almas para o que está vindo e, com isso, manter-nos saudáveis. Esse espaço
anímico pode ser entendido como consciência. Nesse caso, como uma consciência
vigilante. Devemos estar despertos diante de nossas tarefas diárias e,
igualmente, frente às nossas demandas internas, o que o teólogo chamou de
"fatos que partem dos Reinos dos Céus".
Os
céus estão em movimento. E os homens? Na cultura cristã, desde João Batista, há
mais de dois mil anos, estamos sabendo que para encontrar aquilo que pode nos
preencher com vida e plenitude devemos nos colocar em movimento. Um movimento
especial em direção interna. Um movimento que permita o desabrochar de
qualidades fortalecedoras e higienizadoras. João Batista ensinava: que o tempo
antigo está cumprido e que um novo tempo precisaria começar. Esse novo tempo
está dentro de nós.
São João e a Perdiz
"Um
estrangeiro que ouviu falar em João, resolveu visitá-lo. Imaginava o santo
homem estudando debruçado sobre manuscritos, aprofundando-se em grandes
contemplações. Ele o visitou e ficou muito admirado ao ver João brincando com
uma perdiz, que lhe comia da mão, enquanto ele fazia mil brincadeiras com a
dócil ave. São João viu a surpresa do estrangeiro, mas fez de conta que não
percebeu nada. Durante a conversa lhe disse: - Tu tens aí um arco? Mantém ele
sempre tenso? - Deus me livre! - disse o
estrangeiro e continuou – Isso não faz nenhum caçador. O arco iria afrouxar-se.
Então João retrucou: - Com a alma humana também é a mesma coisa. Ela tem de ser
solta, senão afrouxa!" Essa fábula, São João e a Perdiz, escrita pela mãe
do escritor alemão Goethe para ensinar-lhe o valor do lazer, traduz o espírito
da época de João: vida interior não é o oposto de alegria e diversão.
O
balão vai subindo, vai descendo a garoa. O céu é tão lindo, a noite é tão boa.
São João, São João, acende a fogueira do meu coração. João aquece corações. Com
nossos corações aquecidos, estamos prontos para um momento de interiorização.
Dentro de nós, nesta época, devemos acender uma fogueira, devemos contemplar
nosso céu interior. Buscar no brilho de nossas estrelas, formadas pelas atitudes positivas que já tomamos, por
antigas superações, a coragem para conquistar o propósito de nossas vidas. Essa
chama que surge da reflexão e sobe em direção ao infinito de possibilidades
deve nos poder preencher de poder e força.
Essa
imagem mítica, advinda de João, se torna atemporal. Passado, presente e futuro
se equivalem. Transformam-se em elementos atuantes no fortalecimento da
vontade. Fortalecimento que se dá ao contemplarmos o passado do momento
presente e que nos conduz ao futuro com maior confiança e fé. No escuro e frio
da noite joanina, no brilho das estrelas, encontramos a imagem dessa ação
interior, repetida anualmente com a ajuda de todos os ícones da época. Mesmo
quem não acredita se deixa contaminar pela tradição popular de uma profundidade
atávica sem par.
Ao
mesmo tempo em que João nos apresenta o caminho da reflexão, da atitude
interior, nos mostra que isso pode ser feito com calor e alegria. Ou melhor:
isso só pode ser feito com calor e alegria. Ao contrário do que muitos
imaginam, vida interior não tem necessariamente a ver com austeridade, com
estoicismo. A vida interior sugerida por João é repleta de alegria e diversão. O
Anjo Gabriel ao anunciá-lo já predisse: "Alegria e regozijo te
preencherão, muitos terão alegria por causa do teu nascimento". Por isso,
neste junho de João, alegre-se, divirta-se e, ao mesmo tempo, mergulhe em si
mesmo.
Joãzinho, vem para o
banho
A época de João
chegou. Parece que o céu noturno se aproxima de nós, trazendo a dimensão do
espiritual para o cotidiano. As festas dos santos alegram corações e deixam as
mentes mais confusas diante de suas racionalidades arbitrárias. Estou, aqui na
coluna, tentando seguir João até o final de junho. Na pequena história de hoje, vamos chegar perto
do plano estelar da vida. Seria este plano estelar assim tão distante de nós?
Ou estaria ele em um mundo de intensidades simples, de estares comuns?
A noite caía naquele rincão seco de
Minas. O ar gelado cortava as narinas e inventava nuvem diante dos rostos das
crianças que brincavam na rua de terra batida. A
primeira estrela já prometia sonhos quando uma voz interrompeu o ruído do
brincar: Joãozinho! Vem para o banho!
Joãozinho era um menino franzino. Franzino e
pequeno. Pequeno e briguento. Briguento e teimoso. Joãozinho, enfim, era um
menino. Um menino desses, comuns, nem bonito demais, nem feio em demasia. Nada
de talentos especiais, nada de dons exclusivos. Nada que impressionasse à
primeira ou à segunda, nem mesmo à terceira vista.
Joãozinho, como já se disse, era um menino. Um menino desses que a gente vê
todo dia ao entardecer, brincando na rua de terra batida por esses rincões
secos de Minas.
Deve ser por isso que Joãozinho, como todo menino
brincando na rua sob a estrela vespertina, gritou: Já vai, mãe. Gritou e não
foi. Não foi e continuo a brincar, quicando a bola e
levantando poeira em direção ao gol, improvisado com as chinelas de Jesus.
Jesus era também um menino. Era também franzino.
Franzino e um pouco mais alto e um pouco mais calmo e ainda mais comum do que João. Jesus também
não entrou para o banho quando a mãe gritou. Logo agora? Era a vez dele no gol. Logo agora teria que entrar? Não ia. E ficou. Ficou e
falou: Já vai, mãe.
A noite terminou de cair. O ar ficou ainda mais
gelado. A nuvem do rosto ainda mais espessa. O ruído do brincar ainda mais
alto. A hora do banho ainda mais distante. Uma fogueira começou a brilhar no
lote vazio. Quando a bola caía longe, João
aproveitava o intervalo para ir até a fogueira aquecer as mãos e voltava
correndo para o meio da rua de terra seca e batida. Entre a fogueira, a
bola e a rua, um espaço. Entre a fogueira, a rua e a casa, um tempo. Entre a
fogueira, a casa e as estrelas, um mundo. Um mundo de intensidades simples. De
estares comuns. Um mundo estelar bem perto da vida.
Daqui a pouco se ouviria mais alto o grito da mãe:
Joãozinho vem - já - para o banho! E os meninos entrariam para suas casas, seus
banhos, suas jantas, suas camas. A noite cederia ao dia, à escola, ao almoço.
Mas os meninos sabiam: um novo entardecer logo chegaria.
A alma alegra-se na época de São
João
Utilizando as comemorações culturais e
as estações do ano como base para seu planejamento, o educador Waldorf
desenvolve de maneira lúdica, intensa e amorosa ações pedagógicas que ajudam no
fortalecimento e na ampliação das capacidades, tanto cognitivas quanto éticas,
da criança. Muitas dessas práticas podem
ser realizadas em casa de forma divertida e envolvente. Publicado
na Revista Pais e Filhos em junho de 2010. http://www.revistapaisefilhos.com.br/na-alma/444
O
Anjo Gabriel ao anunciá-lo já predisse: "Alegria e regozijo te
preencherão, muitos terão alegria por causa do teu nascimento". O céu é
tão lindo, a noite é tão boa. São João, São João, acende a fogueira do meu
coração...
João
alegra e aquece corações. Com nossos corações aquecidos, estamos prontos para
um momento de interiorização. Dentro de nós, nesta época, devemos acender uma
fogueira, devemos contemplar nosso céu interior. Buscar no brilho de nossas
próprias estrelas, formadas pelas atitudes positivas que já tomamos e por
antigas superações, a coragem para conquistar o propósito de nossas vidas. Essa
chama que surge da reflexão e sobe em direção ao céu infinito de possibilidades
deve ser capaz de nos preencher de poder e força por todo um novo ano de atividades
e desafios até que a época junina volte a nos aquecer e fortificar.
São
João é um alimento quente para a alma e não é necessário ser cristão ou
religioso para se sentir isso. A própria natureza, assim como sua representação
cultural, o folclore, nos ensina a principal lição de João: a alegria aquece o
coração.
A
Educação Waldorf utiliza-se desse potencial para fortalecer as capacidades
cognitivas da criança de forma lúdica, intensa e amorosa. Trabalhando com
músicas, ritos e histórias que promovem as qualidades anímicas de alegria,
calor e transformação, os educadores ajudam os pequenos a formar seu espaço
interior de atividade. Espaço esse que não é somente místico ou religioso, mas
também, e principalmente, cognitivo e possibilita o ancoramento da aprendizagem
e da capacidade de concentração tão necessária para o desenvolvimento saudável
do ser.
Assim
como não é necessário ser religioso para se comemorar a época da alegria
interior, não é preciso ter filhos na escola Waldorf para exercitar a lição da época junina. O importante é o
sentido que imprimimos ao que fazemos. João dizia ao pregar no deserto:
"Mudai vossos sentidos". Podemos entender isso da seguinte maneira: a
festa é a mesma, as comemorações são as mesmas, mas o sentido que damos a isso,
através de nossa intenção e de nossos gestos, é que pode se diferenciar para
que uma qualidade interior positiva e transformadora desabroche.
Dessa
forma, com pequenas e divertidas ações, é possível criar em casa uma atmosfera
especial e fazer com que toda a família se envolva e se beneficie. Aqui em
casa, por exemplo, a época de São João é especialmente animada. Durante o mês
de junho, as janelas vão ganhando bandeirinhas coloridas. Nelas escrevemos
qualidades, talentos e desejos. A bandeirinha do “amizade para todos” e a da
“ordem no guarda-roupa” convivem alegremente na janela da cozinha. Na hora do
jantar, a luz artificial diminui, uma velinha é acesa e pequenas histórias são
contadas e recontadas. O conto “A menina da lanterna” é um dos favoritos. Ele
narra a trajetória de uma menina em busca da chama para acender sua lanterna e
é repleto de imagens que traduzem o poder transformador do fogo. Antes de
dormir, uma pequena canção é acrescentada à oração da boa noite: “Sobe a chama,
sobe a chama, mais alto, mais alto, ilumina, ilumina nossas vidas, nossas
almas...”.
Feliz
meio ano!
Há certas épocas do ano que não
favorecem a renovação. Quando se está no meio do ano, às vezes se precisa
sacudir um pouco a vida para conseguir consertar o rumo que o ano tomou, apesar
do desejo e da esperança de que fosse um bom ano. Para isso, uma fórmula para
se conseguir um "up" extra seja uma reinauguração. Minha sugestão é fazer uma linda ceia, vestir
um traje branco e começar de novo.
Sabe
aquela popular máxima do copo meio cheio ou meio vazio? Pois é. Estou assim com
o ano. Não sei se já passou meio ano ou
se ainda falta meio ano. Acho que isso acontece quando o ano está meia boca.
Bem, talvez eu deva esclarecer o que vem a ser "meia boca". Assim,
jogado como um adjetivo legítimo sem aspas ou qualquer tipo de marcador ou
modalizador pode depor contra a capacidade expressiva dessa que vos fala.
Portanto,
vou ensaiar uma explicação meia boca. Vejamos... um guarda-chuva, segundo um
não tão conceituado blogueiro, o guarda chuva é um bom exemplo para meia boca,
diz ele: "Odeio guarda-chuvas. O guarda-chuva é um exemplo clássico de
invenção meia-boca. Você sai na chuva com um desses e certamente vai se molhar.
Claro que não tanto quanto se molharia sem um guarda-chuva. Mas vai se molhar
do mesmo jeito. O guarda-chuva funciona 'meia-boca'. É o suficiente para que
não se invista em melhores soluções. Já funciona. Meia-boca".
Nesse
universo dos meios, o meio ano é um período morno. O semestre acaba, mas o ano
não, as férias chegam, mas não completamente. É inverno, mas o calor é seco e
sufocante. Enfim, ficamos com uma sensação de incompletude, de meio-tudo. Talvez seja um pouco de mal humor. Talvez. O
fato é que não me sinto tão bem assim. Queria que fosse Natal. Aí sim, o ano
acabaria, as festas alegrariam, as férias trariam uma promessa de relaxamento e
descanso. E o ano, tendo sido bom ou mal, seria uma lembrança. Poderíamos
dizer: foi um bom ano ou graças, o ano acabou.
O
problema de agora é que estamos no meio. O que passou ainda atua sobre nós e o
que virá não é tão renovador para nos fortificar. Já sei: vou inventar um ano
novo. Vista branco e abra o espumante. Feliz Meio Ano!
Micael e o
dragão
Micael
traz querer, força, coragem.
Ele
é espírito solar.
Ele
quer que se o veja.
Ele
trabalha com as conseqüências,
não
com as causas.
Micael
é calado, contido.
Ele
não dá repostas,
ele
aí está, ele quer!
(R.Steiner)
Nas escolas
Waldorf, essa semana, comemora-se a primavera e a festa de Micael, o cavaleiro
que nos ensina a ter coragem e a enfrentar os dragões que surgem em nossa vida.
As crianças maiores são estimuladas a participar de gincanas de coragem.
Desafios como andar na corda bamba, saltar, atravessar labirintos. Pequenas e
seguras brincadeiras que exigem coragem da criança.
Micael, o valente
cavaleiro, também dá um presente: a pedra da coragem. Durante o ano, quando o
medo se apresentar mais forte, a criança pode segurar a pedra e cantarolar
baixinho: “São Micael vença o dragão e ponha a coragem no meu coração".
Dessa forma, o pequeno é solicitado a buscar em seu interior a força do
enfrentamento.
Gosto de pensar em
São Micael como um socorrista, pronto para nos atender nas piores aflições e
disposto a participar conosco dos momentos de alegria. Conto a meu filho sobre
a tarefa de São Micael, morador da lua e guardião da Terra, de impedir que o
dragão que lá habita desça à Terra, perturbando a paz. Na minha história, meio
lenda, meio invenção, São Micael, diz ao dragão, quando esse tenta voar em
direção ao nosso planeta: "Não...dragão".
Dia
desses, o pequenino, com medo de subir as escadas no escuro, falou para si:
“Não...dragão”. Confesso que também costumo falar baixinho, como a um mantra,
quando as coisas apertam e ansiedade e medo do futuro me assombram.
A chorona
Diante de uma criança chorona, a
maioria de nós se desespera. Ficamos irritados, intolerantes, queremos calar o
chorão a todo custo. Dificilmente paramos para tentar entender realmente aquela
alma que chora. Quase nunca nos colocamos em seu lugar para tentar compreender
o que sente em seu íntimo. Fazemos assim, é natural, porém, isso pode ser um
reforçador negativo eternamente presente na vida desta pessoa. Quem sabe, da
próxima vez que escutarmos um chorinho, a gente não se esforça um pouquinho e tenta
ouvi-lo com o coração.
Ela
tinha medo de chorar. Desde que ficara mocinha, prometera a si mesmo não mais
chorar por tudo e por nada. Quando pequena era chamada de chorona. A tia-avó
dizia, quando ela começava o berreiro, lá vem o carro de boi. Referência
maldosa ao som nheco-nheco que a roda da carreta produz.
Agora,
promessa feita, não chora mais. Para isso, faz uso de diversas técnicas por ela
mesma desenvolvidas ou copiadas. A mais comum delas, de efeito nem sempre
eficaz, é morder o lábio com força. A mordida doída funciona mais em momentos
de raiva leve.
Antes
disso, na primeira palavra grosseira, no primeiro empurrão, as lágrimas
saltavam-lhe aos olhos antes mesmo que um pensamento se manifestasse em sua
mente. Era automático. Isso a deixava com mais raiva do que o próprio
acontecido. Lembrar esses episódios fortaleciam sua determinação de nunca mais
chorar.
Outra
coisa que lembrava como uma voz fantasmagórica, vinda do passado de chorona,
era a voz imperativa que ordenava: engole o choro!, e repetia, ainda mais
severa, en-go-le-o-cho-ro! Ai, que lembrança mais dolorosa. Dava vontade de
chorar só de lembrar. Mas não choraria mais, prometo.
Desenvolveu
um método, praticado muito amiúde na adolescência para engolir o choro:
cantarolava. Enchia a mente, repetindo sempre a mesma canção que escolhia de
acordo com a ocasião. Enquanto recebia a bronca, a desfeita ou a agressão
verbal, cantarolava mentalmente. Assim, procurava manter os ouvidos fechados.
Quase sempre dava certo e, quando não dava, mordia o lábio de raiva.
Ultimamente,
levando menos bronca ou discursos violentos, utilizava a técnica também diante
de situações de desamparo ou fracasso. Cantarolava. Porém, o repertório era
outro. Agora, soltava a voz da mente utilizando pequenas canções de fé. Na
maioria das vezes, tentava mentalizar um hino da época em que estava.
Em
maio, cantava: Maria de Nazaré, Maria me cativou, fez mais forte a minha fé e
por filho me adotou. Em junho: São João dararão, tem uma gaita tarará, quando
toca rará, bate nela. Todos anjos roros, tocam gaita rará, tocam gaita rará
aqui na Terra.
Hoje,
dia de São Micael, provavelmente, diante de uma situação de estresse, veremos a
ex-chorona cantarolar: São Micael, vença o dragão e ponha a coragem no meu
coração.
Ação de Graças
Começar
essa época festiva do ano agradecendo é um movimento que pode elevar nosso
padrão vibratório e colaborar energeticamente para um mundo melhor.
Pode
até ser que eu esteja ficando repetitiva, mas acontece que eu acho uma lástima
não termos aqui, no Brasil, um Dia de Ação de Graças como manda o figurino. Adoro
o Turkey Day. Gostaria demais que fosse um ótimo feriado, com a família reunida
e um peru assando no forno. Seria um ensaio para o Natal.
A
partir do Dia de Ação de Graças, bem festejado, estaríamos sintonizados com o
Advento. Faríamos a primeira de uma série de celebrações que termina no sexto
dia do ano novo, no Dia de Reis. Por mim, teríamos uma festa por semana.
Celebraríamos o ano que se aproxima do fim, celebraríamos as oportunidades que
tivemos, celebraríamos os sonhos que ainda iremos sonhar. Celebraríamos o novo
ano. Essa é uma época especial para celebrações. Cerca de quarenta dias de
graças. Parece um pouco a quaresma ao avesso.
Na
quaresma, passamos quarenta dias de reclusão, de reflexão, de purificação. Nessa
época, que se inicia com o Dia de Ação de Graças, passamos quarenta dias de
expansão, de congraçamento, de reunião. Na quaresma, olhamos para dentro de nós
mesmos. Nesse período, olhamos para fora e para frente. Percebemos melhor quem
está do nosso lado. Fazemos planos e projetos. Frequentamos festas, nos
reunimos em torno de um ideal de paz.
E
o que eu acho mais legal, no start dessa época, é que o início é com
agradecimento. É com uma ação de graças. Começamos a época mais festiva do ano,
agradecendo. Por isso, sinto tanto quando percebo um certo descaso com a
terceira quinta-feira de novembro. Deveríamos investir mais nesse dia.
Afinal,
vocês já imaginaram o tanto que temos a agradecer? O simples fato de estarmos,
agora, sequinhos, quentinhos ou fresquinhos lendo o jornal já é excepcional em
um mundo onde as montanhas desabam, os rios transbordam e as vidas se perdem
com tanta facilidade.
Nicolau, o
esquecido
O
nome de Papai Noel ou Santa Claus tem origem na lenda de São Nicolau, um homem
bom que viveu na Rússia ou na Turquia e que presenteava as crianças. Nas
escolas Waldorf, costuma-se comemorar seu dia, seis de dezembro, deixando o dia
de Natal, mais voltado ao nascimento de Jesus. Dessa forma, a imagem de Papai
Noel é preservada, mas a de Jesus na manjedoura pode ser vivenciada com mais
intensidade, pois o bom velhinho, já teve sua hora. Além disso, os rituais
pedagógicos praticados no Dia de São Nicolau, permitem à criança a aprendizagem da reflexão e do
questionamento sobre as ações que teve
durante o ano.
Outra
tradição pouco difundida no Brasil, além da que falei semana passada, a Ação de
Graças, é o Dia de São Nicolau. Nas Escolas Waldorf, as crianças comemoram o
São Nicolau e, assim, preservam o Natal para os eventos da cristandade.
São
Nicolau foi um homem bom que, segundo a lenda, viveu na Rússia ou na Turquia.
Na tradição Waldorf, seis de dezembro, Dia de São Nicolau, simboliza a
capacidade de avaliar o que ficou para trás. Nicolau tem um livrão onde está o
registro de todas as ações humanas. Ele
filtra o que podemos saber ou não. Podemos tentar ver, com consciência, o que
está anotado no livrão.
A
luz que ajuda essa visão, também chamada de insight, pode vir por sonhos ou em
momentos de reflexão. O ajudante de São Nicolau, um serzinho repugnante, somos
nós, sem nossa auto-ilusão. São Nicolau sinaliza: limpe o velho, olhe para
dentro do que já passou para poder ganhar o novo. Se minha "vidraça"
está opaca, a luz não entra, se está embaçada, a luz entra distorcida, e aí vem
a inabilidade em aceitar o novo, aceitar um presente. Saber acolher um presente
da vida é uma qualidade especial.
Nem
todos os presentes são reconhecidos por nós, pois parte de nossa "cartinha
de Natal" permanece no inconsciente. Por isso, quando tais presentes da
vida nos chegam, não reconhecemos como nossos, como escolhidos por nós. Por
isso, após a Ação de Graças, onde agradecemos tudo que a vida dá sem distinção,
vem o Dia de São Nicolau, tempo de olhar para os presentes recebidos e voltar à
origem, à cartinha com os pedidos que fizemos antes de nascer para a vida na
Terra.
Os
alunos das Escolas Waldorf, repetem os rituais de São Nicolau a cada ano e, com
isso, terão a capacidade futura de ser coerentes com sua própria alma. Nós,
passamos por seis de dezembro, esquecidos e apressados. Por que será?
A vida no Advento
A época do
Advento é especialmente feliz para mim. Adoro tudo que se refere às tradições natalinas.
Entre elas, uma que gosto de fazer quando se tem crianças pequenas é o
calendário de Advento. Pode ser de cartolina, com caixinhas de fósforo ou casca
de nozes, o importante é que tenhamos uma marca para cada dia que antecede ao
Natal. No caso da cartolina, fazemos um desenho nos domingos de Advento, na
véspera e dia de Natal, no ano novo e no Dia de Reis. Depois, junto com a
criança, vamos desenhando cenas do dia-a-dia em cada um dos quadradinhos até
que chegue o dia tão esperado por elas. O efeito é genial. Com as caixinha ou
cascas de nozes, podemos colocar um presentinho dentro e pendurá-las, pregadas
em fitas e, a cada dia, abrir uma delas até a chegada do Natal ou o Dia de Reis.
Se
tem uma época do ano que eu gosto muito é essa: o Advento. Adoro essas quatro
semanas que antecedem ao Natal. Adoro também depois, da chegada do novo ano até
o Dia de Reis. Cada dia dessa época é repleto de tradição e fantasia. São as
cartas ao Papai Noel, as velas acesas uma a uma na Coroa do Avento, as luzes da
árvore de Natal piscando. Simplesmente, adoro.
Gosto
muito de tradições repetidas ano a ano. Gosto de abrir as caixas onde os
enfeites de Natal são guardados e olhá-los com um misto de nostalgia e
novidade. Parece que as lembranças dos natais anteriores também ficam nas
caixas, esperando para que sejam abertas novamente. Além disso, a cada ano,
compramos mais um enfeite, mais um detalhe que se junta àqueles colecionados
por toda a vida.
Outra
coisa que emociona e encanta é a coleção dos cartões. Aqui em casa, eles são
guardados junto com os enfeites e vão aumentando com o passar dos anos. Hoje em
dia, são poucas as pessoas que ainda conservam o hábito do cartão de papel com
escrita e assinatura à tinta. A maioria prefere os cartões digitais enviados
por e-mail, mas não é a mesma coisa. O cartão de papel, entregue pelo correio,
tem uma energia própria e conserva a lembrança da pessoa que enviou por mais
tempo.
Infelizmente,
a correria, que também marca essa época do ano, repleta de monografias,
fechamento de notas, encomendas e eventos, tem me impedido de mandar cartões.
Sempre gostei de produzi-los manualmente, um a um, com uma mensagem especial
para cada amigo, mas já faz alguns anos que não consigo enviá-los. Mesmo assim,
ainda conservo muitos dos ritmos da época e me orgulho por isso.
Depois
da montagem da árvore, no Dia de Ação de Graças, costumo, a cada semana,
introduzir um enfeite. Na primeira semana, faço o calendário, na segunda,
penduramos estrelas pela casa toda, na terceira, montamos o presépio, na
quarta, fazemos os biscoitos e as velas.
Todo
esse ritmo fecha o ano com leveza e gratidão e nos renova e prepara para os
novos desafios que virão com a chegada do ano novo.
A coroa do advento
Constituída
de velas que variam de cor conforme a
tradição de cada comunidade, a Coroa do Advento
é uma das tradições natalina muito singela. Em cada um dos quatro domingos que antecedem
o Natal, uma das velas é acesa até que toda
a coroa se ilumine. Aqui em casa, incluímos uma quinta vela, que é
acessa na noite do Natal e representa o nascimento do menino-luz.
No
início de dezembro, fui até a fábrica de
velas da cidade para comprar as velas do Advento. Uma das tradições que mais
gosto nesta época natalina é a de montar e celebrar a coroa do Advento.
Aqui
em casa não somos ligados a nenhuma religião.
Nossa maneira de celebrar o Natal é bem singela, baseada no folclore e
na natureza. O ritual da coroa do Advento, por exemplo, une elementos da
natureza e passagens bíblicas que fazem parte de muitas tradições folclóricas
da cristandade. Não há nesta forma de celebração um elemento canônico
propriamente dito.
Com
a coroa do Avento representamos a preparação da natureza e da espiritualidade
para o nascimento de uma criança divina. Através do nascimento do menino Jesus, podemos
também representar o nascimento de todas
as crianças. Toda nova vida que chega, faz o mundo a sua
volta se sentir mais iluminado, mais esperançoso, mais feliz. São as
forças que atuam na natureza para a
constituição desse novo ser que celebramos no advento através das velas
coloridas da coroa.
A
vela azul representa o reino mineral. Aquilo que nos constitui como matéria,
como seres da terra. Por ser material é também o elemento mais próximo do
espiritual, pois na matéria as leis divinas estão presentes de forma intocada.
Ao contemplarmos as pedras, a água e os demais elementos minerais da natureza
podemos sentir o sopro da divindade.
A
vela verde representa o reino vegetal. Para nascermos, necessitamos desse reino
que traz em si a força da própria vida. As árvores e o ar
que produzem, e os alimentos são responsáveis por existirmos.
Na
terceira semana do Advento, acendemos a vela amarela, a representante do reino
animal. Esse reino nos constitui como seres de relação. Nossa natureza animal
permeia o que somos primitivamente.
No
domingo que antecede o Natal, em torno da vela vermelha celebramos a
humanidade, aquilo que nos distingue e nos une aos demais reinos: nosso eu. Por
fim, na noite de Natal a vela rosa é acesa, lembrando o nascimento do menino
luz, aquele que veio ao mundo para iluminar e que está dentro de cada um de
nós.
Logo será Natal
Logo
será Natal e depois teremos doze noites santas entre vinte e cinco de dezembro
e o Dia de Reis. É a época do ano que mais gosto. Sinto claramente em mim um
deslocamento da atenção e uma dilatação do sentido.
A
atenção é deslocada das atribulações do dia-dia para as expectativas e projetos
futuros. Há uma intensificação da confiança e uma sensação de abertura, de
possibilidade. A construção diária do sentido da vida é dilatada. Entra em cena
o questionamento, a pergunta, a avaliação. Novos sentidos são inventados e a
existência passa a ganhar cores outras. Uma oportunidade de reconfigurar o
mesmo que vitaliza e aumenta nossa potência.
Muito
já falei dessa grande oportunidade que vivemos anualmente para nos reinventar.
A instituição desse hiato temporal repetidamente nos fortalece pode enriquecer nossa experiência de vida. Alguém poderia dizer, mas todo ano é assim. Ao
que eu responderia: que bom. É exatamente a repetição que pode fortalecer.
Em
uma sociedade que exalta o inédito, que busca sempre o diferente, o diverso,
fica difícil compreender o poder ativador do repetido. O que se sente na
repetição? Na criança, por exemplo, a repetição pode ampliar a percepção, pode
acalmar, pode dar a sensação de continuidade. Não é a toa que os pequenos
adoram as repetições, são capazes de ouvir a mesma história inúmeras vezes. Para
nós, adultos, a repetição vivifica, fortalece nossa capacidade de enfrentamento
e, surpresa, aumenta nossa inventividade.
Parece
que a criatividade e a inventividade estão sempre ligadas ao inédito, ao novo,
pois essa visão é apenas superficial. Quando repetimos ampliamos a observação e
isso possibilita que outra visão se dê no mesmo, intensificando qualidades
inventivas e criativas. A potência da variação do mesmo é um tema complexo para
entender com pensamento linear, mas é
facilmente sentido quando as luzes do Natal começam a brilhar.
O burrinho
Com meu burrinho vou andando
A caminho de Belém (bis)
Vem que vem, vem que vem,
A caminho de Belém. (bis)
O Sol que nasce amarelinho
Ilumina meu caminho (bis)
Vem que vem, vem que vem,
A caminho de Belém. (bis)
A caminho de Belém (bis)
Vem que vem, vem que vem,
A caminho de Belém. (bis)
O Sol que nasce amarelinho
Ilumina meu caminho (bis)
Vem que vem, vem que vem,
A caminho de Belém. (bis)
Nessa
época de Advento é bom lembrar do burrinho que carrega Maria pela noite fria a
caminho de Belém. Personagem inesperadamente cativante, enfeita o imaginário infantil nos
contos e músicas da Educação Infantil. Ele é pacato e sereno, mas forte. Tem
qualidades que podem nos fazer lembrar de que a grande força nem sempre vem do
estar no centro, de que a coragem nem sempre vem do lutar e que a constância,
nesses tempos mexidos, pode ser uma riqueza. Cinzento e humilde, o burrinho
sabe que leva um bem precioso e que carregar algo anonimamente é seu maior
talento. Ajudar discretamente para que outro brilhe é uma missão oculta das
mais importantes.
Habituamo-nos
a uma sociedade que exalta as
celebridades, incentiva o aparecimento, investe na formação de lideranças, premia
os mais destacados e visíveis e
valoriza as marcas do sucesso. Nossa sociedade despreza até mesmo o segundo
lugar, mesmo quando a competição teve milhares e só um ganhou. Por isso tudo,
nessa época, o burrinho é meu herói.
Quem
sabe não aprendo com ele o valor do não-destaque, do não se mostrar, do não
aparecer. Lições essas que preciso exercitar cotidianamente. Quem sabe o saber
cinzento do burrinho pode tentar diminuir um pouco minha tendência a valorizar
demais a cor. Quem sabe, o pisar sereno e constante do burrinho, deixando-se
levar por quem conhece melhor o caminho,
poderia me ajudar a compreender que atuar colaborativamente, sem buscar
reconhecimento ou gratidão é uma possibilidade de afirmação da vida viva.
Vejam
só, quem diria, meu professor nesse advento não é um douto titulado e sim um
pequeno e anônimo burrinho, um personagem secundário. Quero aprender com ele a
servir, carregar, trabalhar duro sem esperar nada em troca. Pelo simples fato
de que, estar, fazer, participar, são verbos a serviço do viver.
Pequenos rituais
Pequenos
rituais caseiros podem transformar nossa passagem de ano em um momento de
conexão com as forças positivas que nos cercam e que, nem sempre, na correria
em que vivemos, temos a oportunidade de nos conectar.
Já
falei um pouco sobre a maneira como comemoramos a época que antecede o
Natal, atribuindo um significado singelo
e universal à Coroa do Advento. Hoje, quero falar sobre um pequeno ritual de
passagem do ano. Ele difere de comer uvas, romãs ou pular sete ondas, mas no
fundo, a intenção é a mesma: fortalecer nossas boas intenções para o ano que inicia. É uma pequena cerimônia
caseira, feita alguns minutos antes da ceia, nascida espontaneamente, fruto
desse sincretismo moderno que nos
constitui. A forma do ritual utiliza uma tradição milenar japonesa: a arte das
dobraduras em papel ou origami.
Uma
das figuras mais populares entre os origamis é o grou, uma espécie de cegonha,
que no Japão é chamada de tsuru. O tsuru tem um forte valor simbólico,
representa paz, saúde, longevidade e fortuna. Por esse motivo, no mundo todo, os
pequenos pássaros de papel são presenteados nas ocasiões festivas. Além disso,
dizem que se dobrarmos mil tsurus nossos desejos serão realizados. E que, ao
presentearmos uma pessoa doente com o milheiro dessas aves sagradas, ela se
curará. O certo é que, ao dobrarmos cada figura, depositamos nela nossa fé,
nossas intenções e, com isso, acabamos formando uma forte vibração positiva. Foi
baseado nessas tradições que, há alguns anos, criamos nosso ritual de passagem
de ano.
Ao
colocarmos a mesa para a ceia, incluímos entre os pratos e talheres, canetas
coloridas, lápis de cera e pequenos pedaços de papel, cortados no tamanho de
doze centímetros quadrados. Nele, escrevemos nosso principal desejo para o ano
que virá. Depois, dobramos a figura milenar que passará o ano todo dependurada como um móbile sobre nossa cama. Assim,
durante um ano, toda vez que nos deitamos temos o pássaro sagrado nos lembrando
daquilo que desejamos.
É
um ritual simples, que não exige nada além de um pouco de habilidade manual e
um pedaço de papel, mas que fortalece nossa fé e nosso desejo de uma vida
melhor.
“Em vez de festejar, comemorar na forma
tradicional as festas anuais, podemos criar novas maneiras de festejar.
A humanidade recebeu a forma de festejar por
forças divinas, dos deuses; agora é hora de o homem criar suas festas com a
força do seu interior”.
[1] Os textos entre aspas são da Profa.
Leonore Bertalot e se encontram disponíveis em: http://www.festascristas.com.br/ciclo-das-festas/540-o-ritmo-e-as-festas-anuais-leonore-bertalot
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